Pesquisa e ética: anotações sobre Max Weber1
Carlos Otávio F. Moreira 2

        Quando recebi a carta-convite para participar deste seminário, em uma mesa redonda cujo título era “Relações entre pesquisa política e prática", cheguei a pensar que houvera algum tipo de engano. Honrado pela oportunidade de compartilhar uma discussão com agentes tão importantes do campo da educação, feliz por retornar a essa casa, que também é a minha casa de formação, aceitei o convite, mas interroguei as organizadoras do evento sobre o título da mesa. Não haveria algum tipo de engano? Não faltaria ao menos uma vírgula nesse título? A idéia não seria discutir a relação entre pesquisa, política e prática? Recebi a confirmação de que a questão a ser debatida era a relação entre pesquisa política e prática, sem vírgula. Há poucos dias atrás, a programação do evento trazia o tema definitivo: Relações entre pesquisa, política e prática.

        Pensei então em dizer algo sobre o tema geral do seminário - Pesquisa em Educação: Entre Passos e Impasses -, compartilhando com vocês algumas questões sobre a pesquisa científica como profissão ou vocação, tendo como referência o campo da Educação e as áreas em que venho trabalhando desde o mestrado aqui na PUC-Rio, ou seja, a Filosofia e a Sociologia da Educação. Inquieto com a questão proposta, com vírgula ou sem vírgula depois da palavra pesquisa, lembrei de Max Weber, de suas nas famosas conferências pronunciadas na Universidade de Munique em 1918. Elas tinham os seguintes títulos: Wissenschaft als Beruf (Ciência como vocação ou profissão) e Politik als Beruf (Política como vocação ou profissão). Foram pronunciadas em dias diferentes, falavam de dois temas distintos - ao menos para Weber - mas que aqui e lá podem ser associados, relacionados, confundidos.

        O que tenho para compartilhar com vocês são inquietações, mais perguntas do que respostas. Algumas dessas interrogações aparecem de forma clara no referido texto de Max Weber sobre a ciência como vocação. Não pensei em fazer um resumo de suas idéias, tentando reproduzi-las 86 anos depois. Voltar aos textos considerados clássicos não é, como podem pensar alguns, uma maneira de fugir das questões do presente, mas um procedimento que visa alimentar o debate científico de forma consistente (BRANDÃO, 2002, p.72).

        A questão geral que gostaria de destacar, a partir das reflexões de Weber, é a seguinte: O que significa tomar a ciência como vocação ou profissão? O que significa fazer pesquisa e ensinar? Enfim, o que significa ser um pesquisador-professor? Como economista, Weber fez questão de iniciar a discussão pelas condições objetivas do trabalho docente na Alemanha de 1918. Deixarei essa questão para outro profissional - quiçá para um economista ou um sindicalista - que possa expor para os futuros pesquisadores e professores as condições materiais de ingresso nesse mercado de trabalho. Penso que esse tema é bastante pertinente para um seminário de pós-graduação, ainda que pouco romântico. Tentarei explorar na questão geral anunciada – o que significa tomar a ciência como vocação ou profissão? – aspectos epistemológicos e éticos.

        Normalmente ouvimos e lemos a expressão professor-pesquisador, na qual o termo “pesquisador" funciona como atributo, como um adjetivo que qualifica a atividade do professor. Neste sentido, já é quase senso comum afirmar que todo professor deve ser um pesquisador. Se falarmos de universidade, trata-se então de uma atividade imprescindível, regra de ingresso e permanência nas instituições de ensino superior. Isto nos parece irreversível. Poder aliar ensino e pesquisa parece constituir o próprio ideal da atividade docente. Através da pesquisa científica, podemos aprofundar e atualizar o conhecimento acumulado no campo em que atuamos, podemos estudar e entender os paradigmas que já foram refutados, podemos conhecer outros campos de conhecimento, demarcar melhor ou tentar expandir as fronteiras disciplinares, etc.. Tudo isso, ao menos em regra, nos transforma em profissionais mais capacitados e, talvez, em melhores professores.

        Se vocês perceberam, eu perguntava sobre o que significa ser pesquisador-professor, invertendo, deliberadamente, a ordem das palavras. Na expressão pesquisador-professor, é o termo professor que qualifica ou caracteriza a atividade. E aqui surge a questão: há um vínculo direto, uma relação causal, entre pesquisa e melhoria da prática docente? Não me proponho a negar tal perspectiva – aceita com relativa facilidade -, o que tento fazer é pensar sobre essa relação. E “desistir de pensar em termos de substâncias isoladas únicas e começar a pensar em termos de relações e funções" é uma boa lição de ciência que nos deixou Norbert Elias (1994, p. 25). Mas voltemos a Weber e à relação entre pesquisa e ensino. Na referida conferência, ele indica o seguinte:

 
Apresentar os problemas científicos de modo que uma mente não instruída, mas receptiva, os possa compreender e – o que para nós é decisivo – possa vir a refletir sobre eles de forma independente, talvez seja a tarefa pedagógica mais difícil de todas (WEBER, 1982, p.159)


        Quiçá estejamos dizendo o óbvio, mas não penso que seja exatamente isso. Todo aquele que se sente atraído pela carreira científica, continua Weber (1982), deve compreender claramente que a nossa tarefa é dupla, mas que os dois aspectos não coincidem. Podemos ser intelectuais de destaque e ao mesmo tempo professores muito ruins, afirmava o sociólogo alemão lembrando de um destacado historiador, Leopold Von Ranke, considerado um dos fundadores da ciência histórica moderna. Uma outra maneira de pensar essa relação entre pesquisa e ensino seria considerar o próprio ambiente de pesquisa - a equipe, o projeto, as reuniões – como um lugar de aprendizagem. Para isso, temos que sair de uma perspectiva burocrática ou doutrinária. Ao ingressar em um grupo de pesquisa, podemos aprender a retomar a literatura fundamental para o tema a ser investigado, ensaiar a formulação de hipóteses, “sujar" as mãos na empiria, rever teses que não se sustentam, refazer problemas, retomar a questão por um outro viés, reconstruir a experiência, etc. Mas podemos, também, simplesmente repetir mecanicamente os passos do líder do grupo de pesquisa.

        Além disso, conseguir que o aluno reflita sobre problemas científicos de forma independente, como sugeria Weber (1982), é algo que se refere à relação entre fazer ciência e fazer política. E para me aproximar um pouco mais do tema da mesa, podemos afirmar que essa relação entre pesquisa e ensino envolve, necessariamente, a política e a ética. Adiante falaremos um pouco mais sobre isso.

        Já faz algum tempo que se fala, no campo científico em geral, da necessidade de expandir as fronteiras dos campos de conhecimento. Termos como interdisciplinaridade e transdisciplinaridade são moedas correntes. Assim, precisamos conhecer também algo de outros áreas e campos de conhecimento, mas temos de conhecer ainda muito mais do campo onde atuamos, e temos também de ser capazes de cruzar essas fronteira de forma adequada, sem ferir os cânones, as regras do jogo, pois corremos o risco de ser chamados de neófitos, ingênuos, arrogantes. Apesar de todos os aspectos positivos da perspectiva interdisciplinar, sem o domínio dos fundamentos de cada campo, podemos simplesmente ser desconsiderados em congressos e publicações sérias devido à falta de consistência dos argumentos. Enfim, há que se pensar no que dizia o erudito Max Weber (1982), com sua ampla formação em economia, ciências jurídicas, filosofia e religião:

 
Somente pela especialização rigorosa pode o trabalhador científico adquirir plena consciência, de uma vez por todas, e talvez não tenha outra oportunidade em sua vida, de ter realizado alguma coisa duradoura. Uma realização verdadeiramente definitiva e boa é, hoje, sempre uma realização especializada (p.160).


        Quem já participou de concursos públicos para cargos de professor conhece o peso e a força de uma boa formação disciplinar. Que tipo de pesquisa sobre as relações entre educação escolar e classe social, por exemplo, podemos fazer sem conhecer bem alguns conceitos elaborados por Durkheim, Weber e Marx ? Mas com esses três autores, estamos ainda no século XIX e no início do século XX. Faltariam ainda os sociólogos da Escola de Chicago, o interacionismo simbólico, Parsons, toda a vasta obra de Pierre Bourdieu, Antony Guiddens, etc.. Quanto tempo necessitamos para dominar os conceitos ou ferramentas básicas de uma área de conhecimento? Onde e com que faremos isso? Que filosofia da educação podemos ensinar e produzir sem o conhecimento da obra de Platão, Aristóteles, Rousseau, Kant, Dewey, Paulo Freire? Mas como encontrar tempo e condições objetivas para uma formação tão rigorosa? Nos cursos de pós-graduação?

        Supondo que tenhamos, de alguma forma, desenvolvido os conhecimentos necessários para fazer pesquisa científica em alguma das áreas do campo da educação, uma outra pergunta surge: como encontrar ou fabricar idéias pertinentes (no sentido de temas de pesquisa) para as investigações? Weber (1982) indica que as idéias chegam quando não as esperamos, e não quando estamos pensando e procurando em nossa mesa de trabalho: “Não obstante, elas certamente não nos ocorreriam se não tivéssemos pensado à mesa e buscado respostas com dedicação apaixonada" (p.162).

        Neste sentido, não há boa pesquisa sem conhecimento acumulado, sem a revisão permanente das discussões do campo em que atuamos. Contudo, o acúmulo de conhecimento, embora imprescindível para a prática da pesquisa, não nos deve levar a confundir o grande erudito com o bom pesquisador. Nisso há algo próximo entre os grandes criadores da ciência e da arte. Mas, segundo Weber (1982), o trabalho científico, de forma distinta do campo da arte, estava preso ao curso do progresso. Desta perspectiva, não lhe parecia surpresa alguma que teorias fossem ultrapassadas, refutadas, esquecidas em dez, vinte ou cinqüenta anos:
 
É esse o destino a que está condicionada a ciência: é o sentido mesmo do trabalho científico, a que ela está dedicada numa acepção bem específica, em comparação com outras esferas da cultura para as quais, em geral, o mesmo se aplica. Toda “realização" científica suscita novas “perguntas": pede para ser “ultrapassada" e superada. Quem deseja servir à ciência tem de resignar-se a tal fato (p.164).


        Isto nos remete a algo crucial na atividade de pesquisa. Devemos nos dedicar arduamente ao nosso trabalho, investigando ao máximo o alcance das teorias adotadas e a validade das hipóteses que formulamos. Mas não podemos trabalhar sem a esperança, curiosa esperança, de que outros avançaram e avançarão mais do que nós. Para Weber (1982), esse progresso se faz ad infinitum. Com isso, ele nos interroga diretamente sobre o sentido da ciência como profissão ou vocação:

 
Pois, afinal de contas, não é evidente que algo subordinado a essa lei seja sensato e significativo. Por que alguém se dedicaria a alguma coisa que na realidade jamais chega, e jamais pode chegar, ao fim? (p.164).


        Nós o fazemos, indicava Weber (1982), em primeiro lugar, por finalidades práticas ou técnicas, pois a experiência científica serve para orientar nossas atividades da vida prática. Mas isso não é tudo. Trata-se também de um processo de intelectualização ou racionalização, pelo qual estamos passando há milhares de anos.3 Isto não significa, necessariamente, um conhecimento maior e geral das condições sob as quais vivemos. Significa que esse conhecimento está disponível a qualquer momento, caso quiséssemos acessá-lo. Mas significa, principalmente, que não há forças misteriosas incalculáveis, que podemos interrogar o mundo, podemos interrogar sobre o significado das coisas, inclusive sobre o significado de se fazer pesquisa em educação. Enfim, Weber nos remete à noção de desencantamento do mundo. Esse longo processo por que vimos passando tem alguns marcos fundamentais. O primeiro é a própria idéia de conceito, que laboriosamente, no Ocidente, os gregos da época de Sócrates sistematizaram. O segundo grande instrumento desse processo de racionalização foi a idéia de experimentação, elevada na Renascença a princípio de pesquisa. Quem duvida que esses dois marcos ainda estejam fincados no território da pesquisa científica?

        O último ponto que gostaria de abordar, a partir das reflexões de Weber, talvez seja aquele que desperta menos consenso. Trata-se da postura que devemos ter, como professores e pesquisadores, em relação aos valores, especificamente quando nos encontramos em sala de aula ou em um laboratório, ou seja, quando nos encontramos na posição de professor e pesquisador frente aos alunos. Nesse tema, Weber parece falar de uma perspectiva bem distinta daquela que indica a inexorável relação entre ciência e política. Para Weber (1982), se é impossível demonstrar, cientificamente, qual é o dever de um professor acadêmico,

 
só podemos pedir que ele tenha a integridade intelectual de ver que uma coisa é apresentar os fatos, determinar as relações matemáticas ou lógicas, ou a estrutura interna dos valores culturais, e outra coisa é responder a perguntas sobre o valor da cultura e de seus conteúdos individuais, e à questão de como devemos agir na comunidade cultural e nas associações políticas. São problemas totalmente heterogêneos. Se perguntarmos por que não devemos nos ocupar de ambos os tipos de problema em sala de aula, a resposta será: porque o profeta e o demagogo não pertencem à cátedra acadêmica (p.172).


        Desta perspectiva, a tarefa do professor e pesquisador é servir aos seus alunos com o seu conhecimento e não lhes impor, pela posição que ocupa, posições políticas pessoais. O conhecimento científico tem suas próprias pressuposições, que não se confundem com as dos campos religioso e político. Um professor e pesquisador, por exemplo, não pode se abster de trabalhar com seus alunos fatos “inconvenientes" para as suas opiniões partidárias ou religiosas. Trata-se de um dever moral e uma clara demonstração de vigilância epistemológica e rigor ético.

        Como bem assinalou Weber (1982), ainda que alguns estudantes busquem no professor algo diferente daquilo que está à sua frente, estamos em sala de aula ou em um laboratório exclusivamente como professor/pesquisador. Por mais igualitária, horizontal, que seja a relação entre o professor/pesquisador e o aluno/assitente, eles ocupam posições de poder distintas e assimétricas. Esquecer, diluir ou disfarçar essa questão é desdenhar da configuração básica de uma instituição social chamada escola. Mas seria ingenuidade de nossa parte pensar que podemos interagir com outros seres humanos sem lhes transmitir uma visão de mundo, uma Weltanschauung. O problema é que não fomos preparados e certificados pelas instituições formadoras para ser conselheiros ou líderes espirituais e políticos dos mais jovens. Os títulos de pedagogo, mestre em ciência ou doutor em filosofia não nos certificam para isso.

        Enfim, para que fazemos pesquisa científica? Para gerar tecnologias que nos facilitam a vida? Como vimos, é uma resposta possível. Ou também fazemos pesquisa para criar métodos de pensamento, sem os quais não já não podemos seguir na vida em sociedades tão diversificadas. Weber (1982) indicou que, felizmente, a contribuição da ciência ou da pesquisa científica não alcança seus limites com essas respostas. Há um terceiro e fundamental objetivo para escolher a ciência como profissão ou vocação: o exercício da clareza, o exercício do esclarecimento. Na vida prática, podemos tomar esta ou aquela decisão no que diz respeito aos valores. Porém, como professores e como cientistas, temos de explicitar para os alunos quais conseqüências teremos ao adotar este ou aquele meio para atingir determinado fim. Esta postura parece afinada com aquilo que, no texto “A política como vocação", Weber (1982) chama de ética da responsabilidade, distinta da ética dos fins últimos ou ética da convicção, tão comum na atividade política.4 Estes parecem ser alguns limites da pesquisa científica. Ter em vista esses limites é, no meu entender, trabalhar para desenvolver uma postura crítica.

        Penso que aqui uma reflexão sobre a prática, uma teoria da prática - que de algum modo pode ser encontrada tanto em Sócrates, em Kant, mas também em Weber e em Bourdieu - fez e poderá continuar fazendo algumas modestas contribuições ao exercício da pesquisa científica. Falo do princípio socrático do reconhecimento de nossa própria ignorância; da noção kantiana de crítica como percepção dos limites de uma teoria, de seu território e amplitude, e da permanente vigilância epistemológica. Penso que um professor e pesquisador, que consegue ter êxito em tais aspectos de sua a prática profissional, cumpre o dever de provocar o auto-esclarecimento e demonstra senso de responsabilidade. E seremos mais capazes de realizar isso, diz Weber, na medida em que evitarmos conscientemente o desejo de impor, pessoalmente, à audiência a posição que tomamos.

Muito obrigado!

Rio de Janeiro, setembro de 2004.


1 Texto preparado para o 2º Seminário de pós-graduandos em Educação da PUC-RIO: Mesa de abertura: Relações entre pesquisa, política e prática Bernadete Gatti (Fundação Carlos Chagas), Carlos Otávio F. Moreira (ENSP-FIOCRUZ) e Jailson de Souza e Silva (UFF)

2 Mestre e Doutor em Educação pela PUC-Rio. Pesquisador visitante (ProDoc) da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP-FIOCRUZ).

3 Julien Freund (1987) destaca que tal noção de racionalização “não deve ser confundida de maneira alguma com a pretensa racionalidade imanente à História, que arrastaria o devir humano em um movimento de progresso universal, cujo desfecho seria a epifania da razão entendida como desabrochar da verdadeira justiça, da verdadeira virtude, da igualdade, da paz, etc.” (p. 19)

4 Segundo Weber (1982), há um contraste abismal entre a conduta que segue a máxima de uma ética dos objetivos finais ou ética da convicção, em que a preocupação maior é velar por uma doutrina, e a conduta que segue a máxima de uma ética da responsabilidade, quando é preciso se perguntar pelas conseqüências dos atos cometidos, analisando o que é melhor, conforme a situação. Contudo, “nenhuma ética no mundo nos proporciona uma base para concluir quando, e em que proporções, a finalidade eticamente boa “justifica” os meios eticamente perigosos e suas ramificações” (Weber, 1982, p. 145).






REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFIA:

BRANDÃO, Zaia. Pesquisa em Educação: conversa com pós-graduandos. Rio de Janeiro: Ed. PUC-RIO; São Paulo: Loyola, 2002.

ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994.

FREUND, Julien. Sociologia de Max Weber. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987.

WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. Org. C. Wrigth Mills e H.H. Gerth. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1982.